O leitor deve se lembrar bem do fato de que flautas transversais da Idade Média não chegaram até nós, de forma que não somos capazes de saber exatamente como elas eram feitas ou como soavam. Além disso, poucos exemplos de música escrita para flauta foram encontrados, o que também nos deixa em terreno arenoso quando tentamos levantar suposições acerca das características do repertório flautístico daquela época. A Renascença (ou, se preferir, o Renascimento ou Renascentismo) nos apresenta menos problemas nesse sentido, uma vez que tanto flautas quanto coletâneas impressas de música para flauta do período histórico em questão foram encontradas e estão sendo estudadas por musicólogos. Esse material, entretanto, não descarta a utilidade do tipo de material do qual os estudiosos se valiam para estudar a flauta da Idade Média, ou seja, iconografia e referências textuais.
O período renascentista é limitado, consensualmente, pelos anos 1400 e 1600. Anne Smith (autora do capítulo referente à flauta renascentista presente no livro “The Early Flute”, de John Solum), entretanto, prefere considerar a flauta renascentista como o instrumento musical em uso na Europa entre 1500 e 1670, ano aproximado do advento do traverso barroco. Smith descreve a flauta da renascença como um instrumento de tubo mais ou menos cilíndrico, dotado de seis orifícios para os dedos e um para o sopro.
A flauta é raramente encontrada em pinturas do século XV, começando a aparecer com mais frequência na arte do século XVI. Tais pinturas sugerem um uso da flauta em dois tipos distintos de ambientes, produzindo música igualmente distinta. Um deles era o ambiente militar. Relatos demonstram que a flauta transversal tornou-se um instrumento tradicional da cultura militar em meados do século XV. Em 1467, esquadrões suíços alcançaram famosas vitórias utilizando-se de uma rigidamente disciplinada formação de soldados que não apenas era impenetrável em defesa como também altamente móvel ao atacar. Testemunhas relataram que as tropas suíças marchavam em sincronia perfeita, quase como um mortífero corpo de ballet, ao som de um pífano (uma flauta transversal semelhante àquela descrita por Anne Smith) acompanhado pela marcação de uma bateria. Notícias sobre essa nova técnica de batalha terrestre se espalharam por toda a Europa no final do século XV.
Esta imagem pertence a um manual alemão de lei e ciência militar publicado em 1555. Ela mostra um tocador de pífano (de costas para nós) e um percussionista. Nas costas do tocador de pífano, vemos o estojo de seus instrumentos, dentro do qual cabiam quatro pífanos: um longo, dois de tamanho médio e um de tamanho menor.
Ilustrações de situações de batalha do século XV representam o pífano de maneira não muito uniforme: ele variava muito de tamanho (entre, aproximadamente, 60 e 90cm) e o número de orifícios para os dedos variava entre sete e oito. Thoinot Arbeau (1519-1595), em seu manual de dança intitulado "Orchesogarphie" (1589), descreve um tipo de pífano mais próximo da flauta transversal renascentista e do pífano ainda usado hoje em dia: uma pequena flauta transversal com seis buracos para os dedos, dotada de um tubo muito estreito, contribuindo para a produção de sons estridentes. Arbeau também dá indicações de que a música tocada pelos tocadores de pífano em ambiente militar era improvisada.
Uma rica edição ilustrada do primeiro tratado de instrumentação conhecido foi impressa em Basel no ano de 1511. Trata-se do "Musica getutscht", escrito pelo clérigo Sebastian Virdung (c.1465-1511). Virdung é o primeiro teórico de música do século XVI a mencionar qualquer tipo de flauta, usando o termo "Flöten" para se referir às flautas doces e "Zwerchpfeiff" para se referir ao pífano militar, não aludindo a flautas transversais fora do uso militar. Já Martin Agricola (c.1486-1556) publica em Wittenberg, no ano de 1529 (e também em 1545, em uma edição revisada), o seu "Musica instrumentalis deudch". Nele, Agricola se refere a alguns tipos de flauta transversal – "Schweitzerpfeiffen" (pífanos suíços) e "Querfeiffen" ou "Querpfeiffen" (flautas ou pífanos transversais) –, mas descreve para elas um uso que não está ligado à vida militar.
A imagem acima pertence ao "Musica getutscht", de Virdung. O quarto instrumento de cima para baixo é o "Zwerchpfeiff" mencionado no parágrafo anterior. Logo abaixo dele, quatro instrumentos da família da flauta doce, aos quais Virdung dá o nome de "Flöten". Os dois instrumentos localizados na parte mais alta da imagem não eram flautas, mas sim charamelas ("Schalmey"), instrumentos que precederam ao oboé.
Nesta mesma postagem, um pouco acima, disse que as pinturas do Renascimento demonstram o uso de flautas em dois ambientes distintos e citei, primeiramente, o ambiente militar. O outro ambiente é aquele ao qual os escritos de Agricola fazem menção: o ambiente das cortes e das residências privadas, produzindo música de câmara – mais especificamente, música de consorte. Música de consorte era aquela escrita para uma formação instrumental que abrangia instrumentos da mesma família. No caso da flauta, era música escrita para um grupo flautas do mesmo tipo, mas cada uma com uma linha melódica própria e podendo variar em tamanho, a fim de explorar sons mais graves e mais agudos.
Para Agricola, o consorte de flautas transversais era composto por três instrumentos de tamanhos diferentes: uma flauta baixo, uma outra de tamanho intermediário que poderia fazer a parte do tenor ou do contralto, e uma flauta menor para fazer a parte mais aguda (o discanto, como era chamado na época). Já Philibert Jambe de Fer (c.1515-1566), em seu "L’Epitome musical" (publicado em Lyons em 1556), descreve um consorte de quatro flautas de duas dimensões diferentes. Tratava-se de uma flauta baixo e três flautas menores e de tamanhos iguais entre si, instrumentos cuja extensão permitia que cada um executasse funções diferentes dentro da música. A primeira coletânea de peças escritas para esse tipo de consorte a quatro partes data de 1519, o que indica que Jambe de Fer estava registrando em sua publicação de 1556 uma prática que já vinha acontecendo há algumas décadas.
Música renascentista inglesa executada com um consorte flautas renascentistas. A formação do grupo que toca nesse vídeo, o Flötten Consort Stuttgart, é semelhante àquela descrita por Agricola. O consorte contém três instrumentos: uma flauta baixo e duas flautas de tamanho semelhante (em oposição ao que escreve Agricola, que recomenda o uso de duas flautas menores que a flauta baixo, mas de tamanhos diferentes entre si).
A flauta transversal parece ter alcançado um alto nível de popularidade – e até mesmo de predominância – a partir da metade do século XVI. Tal hipótese é sustentada pelo grande número de flautas transversais listadas em inventários de cortes daquela época. Um inventário escrito em 1589 referente ao instrumentário da corte de Baden-Württemberg, em Stuttgart, informa que tal corte possuía nada mais, nada menos, que 220 flautas transversais, 48 flautas doces, 113 cornetas e 39 violas. Ao mesmo tempo em que a flauta ficou popular nas cortes, ela também atingia popularidade entre burgueses e nobres músicos amadores de ambos os sexos na Itália, na França e na Holanda.
Apesar da presença de tantas flautas transversais em várias cortes europeias, o hábito de fazer música com consortes de flautas parecia ser ainda considerado como algo tipicamente francês em meados do século XVI. Os franceses, inclusive, reivindicavam para si o status de melhores flautistas da Europa – eles pareciam não ser muito favoráveis ao nome dado à flauta daquela época (“flauta alemã”). Tal reivindicação não parecia ser pura vaidade: o fato é que flautistas franceses ocupavam posições musicais importantes até mesmo fora da França, o que pode ser interpretado como um atestado do nível de qualidade de execução da flauta alcançado pelos franceses.
A flauta não estava limitada à música militar e à música de consortes de flautas. Há também indicações de seu uso em agrupamentos instrumentais mistos. Tais agrupamentos não eram incomuns dentro do contexto das músicas religiosa e doméstica. Em 1563, na corte Bávara situada em Munique, Orlando di Lasso (1532-1594) começou a usar instrumentos de corda em música religiosa e, posteriormente, passou a claramente aproveitar todos os tipos de instrumentos e vozes.
Esta pintura, datada aproximadamente do ano 1520, mostra três mulheres fazendo música de câmara, em ambiente doméstico, com um agrupamento instrumental variado: alaúde, flauta transversal e voz.
Filadelfio Puglisi, pesquisador que se aprofundou no assunto das flautas renascentistas, foi capaz de examinar uma coleção de flautas daquele período encontradas em Verona, na Itália. Através da comparação dos instrumentos encontrados, foi-lhe possível enumerar algumas características comuns a eles:
1.O orifício da embocadura era geralmente oval e menor do que o das flautas barrocas;
2.Para facilitar a digitação, os seis orifícios da flauta eram agrupados em dois grupos de três;
3.Todos os orifícios da flauta eram alinhados, o que permitia que o instrumentista segurasse sua flauta à sua direita ou à sua esquerda;
4.O tubo da flauta era quase cilíndrico;
5.As paredes do instrumento eram relativamente finas, fazendo com que o mesmo fosse leve;
6.As afinações dos instrumentos encontrados variavam um bocado, mais foram identificados dois grandes grupos: um afinado com o lá em 435hz (o dito "Kammerton", utilizado em música doméstica e festiva) e outro, mais numeroso, com o lá em 410hz (o "Chorton", utilizado em música religiosa), ou seja, um tom abaixo do "Kammerton".
Algumas das flautas renascentistas encontradas em Verona.
Quanto à prática musical, tanto os flautistas quanto os demais instrumentistas procuravam cultivar em seus respectivos instrumentos as qualidades da música vocal. O uso do vibrato era fortemente encorajado por Agricola e outros relatos apontam que os instrumentistas de sopro da época consideravam o vibrato (tanto o de ar quanto o de dedos) como elemento essencial do som e da expressividade. Flautistas renascentistas também davam grande importância à articulação dos sons. Assim como na fala, uma articulação clara era considerada indispensável para uma boa execução. Jambe de Fer encoraja seus leitores a articularem todas as notas, até as mais rápidas, argumentando que quem não articula bem as sílabas ao falar soa como se estivesse bêbado e, portanto, a mesma atitude produz um efeito ruim na música. Outro aspecto importante do fazer musical renascentista era a diminuição, ou seja, a ornamentação improvisada. O instrumentista deveria ser capaz de ir além da música escrita, acrescentando à melodia original notas de improviso.
Como se pode notar, graças ao fato de flautas renascentistas terem chegado até nós – assim como exemplos de música escrita para elas – temos muito mais informações sobre o instrumento na Renascença do que na Idade Média. No entanto, não devemos pensar que já temos conhecimento sólido suficiente para saber como a flauta era de fato utilizada naquele tempo. Devido a fragilidade e antiguidade dos instrumentos encontrados, poucas são as pessoas que têm acesso a eles. Isso significa que não são muitos os que puderam estudá-los e são em ainda menor número aqueles que foram capazes de fazer réplicas confiáveis dos mesmos e aprender a tocá-los de acordo com o estilo da época. Além disso, não é fácil determinar as datas de fabricação de todos os instrumentos encontrados: alguns deles são bem parecidos com as verdadeiras flautas renascentistas, mas foram apontados como réplicas feitas no século XVII. O que sabemos sobre a flauta renascentista, portanto, está baseado na visão de um número pequeno de especialistas nos quais optamos por confiar.
Principais fontes:
POWELL, Ardal. The Flute. New Heaven and London: Yale University Press, 2002.
SOLUM, John. The Early Flute. Oxford: Oxford University Press, 1992.
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