Antes
de começar a escrever sobre os métodos de flauta que possuo, uma
contextualização histórica se faz necessária. Nas próximas três postagens,
falarei um pouco sobre o uso e o desenvolvimento da flauta transversal desde os
primeiros relatos encontrados sobre o instrumento em questão na Idade média,
passando pelo Renascimento e terminando em meados do período Barroco, no
momento em que a flauta transversal dotada de uma chave passou a ser amplamente
utilizada. Essas postagens servirão de subsídio para uma melhor compreensão do
material sobre o qual escreverei futuramente.
A flauta transversal na Idade Média
Costuma-se
considerar que a história da nossa flauta transversal moderna inicia-se em
torno do ano 1700, período no qual acredita-se que o traverso barroco foi
inventado e as primeiras peças escritas especificamente para ele foram impressas. Sob esse ponto de vista, os vários séculos que precederam o
período Barroco nos parecem impenetráveis e remotos, em especial a Idade Média
(período da história que compreende os séculos V e XV).
Todo
o conhecimento que temos da flauta medieval é oriundo de uma porção de imagens e
de alguns fragmentos de poesia e outros tipos de escritos datados daquele
período. Nenhuma flauta transversal medieval foi encontrada até o momento, de
forma que não podemos saber ao certo como as flautas soavam ou eram tocadas.
Além disso, apenas uma fração da música medieval foi escrita – e aquilo que foi
escrito não contém informações sobre com qual instrumento tocar e nem como tocar.
Comparando
com rabecas e harpas, instrumentos que aparecem com muito mais frequência em
imagens e em escritos, a flauta era, claramente, um instrumento de uso
relativamente restrito na Idade Média. A iconografia flautística encontrada,
entretanto, não pode ser interpretada como reflexo direto da realidade: era
comum que o artista tomasse uma decisão a respeito de como representar a flauta
baseado primeiramente em questões de harmonia e composição da pintura, deixando
o realismo em segundo plano.
Uma miniatura presente em uma coletânea de canções publicadas em torno de 1340. Nela, a flautista segura a flauta a sua direita, mas apenas para criar mais harmonia com a rabeca, fazendo com que os dois instrumentos apontem para o centro da imagem. A maior parte das representações de flautistas datadas Idade Média mostram instrumentistas empunhando os instrumentos à esquerda, e não a direita, como na imagem acima (e como fazemos atualmente).
A
interpretação de material escrito gera outro tipo de problema. O termo
utilizado para se referir à flauta transversa era, frequentemente, o mesmo utilizado
para se referir à flauta doce e instrumentos semelhantes a apitos. Além disso, é uma
tarefa inútil procurar na literatura por referências a flautistas
profissionais, uma vez que, naquela época, o fazer musical não era tão
especializado como é hoje – os músicos deveriam ser capazes de tocar vários
instrumentos.
Muitas
imagens antigas (várias delas ainda mais antigas do que aquelas pertencentes à
Idade Média) que continham representações de flautistas eram dotadas de
temática mitológica. A Grécia, a Índia e o Egito herdaram lendas que associam a
invenção da flauta a divindades. Dentre essas lendas, apenas a do deus grego Pã
faz parte do inventário mitológico ocidental. A flauta criada por Pan,
entretanto, não era uma flauta transversal. Das três culturas citadas neste
parágrafo, a única a atribuir a um deus a criação de uma flauta transversal é a
cultura indiana (para mais detalhes sobre as flautas dessas três culturas, ver
a postagem presente neste blog referente aos diversos tipos de flauta).
A flauta transversa
indiana pode ter viajado até Bizâncio em torno do século X, e, a partir daí,
passou a ser conhecida na Europa. Referências à flauta transversal (tanto na
literatura quanto nas artes visuais) começam a aparecer apenas no século XII. Até
o século XIV, entretanto, ela estava limitada ao território do Sacro Império Romano-Germânico. Vulgarmente falando, Tal território corresponde, hoje, à Alemanha. Por conta dessa
limitação territorial inicial, a flauta transversa passou a ser conhecida como “flauta
alemã” quando, entre os séculos XIII e XIV, chegou a outros países europeus.
Ao final do século XIII, a flauta transversa já parecia estar presente na França (onde era conhecida como "flûte d'Allemagne") e textos e imagens do século XIV demonstram que a mesma era utilizada no âmbito
da música militar tanto na Alemanha quanto na França. A flauta transversa já
havia chegado na Espanha em meados do século XIV, mas, na Itália, aparentemente,
ela só seria conhecida no século seguinte.
Todo o material
coletado sobre a flauta no período medieval revela a inexistência de um padrão
de construção do instrumento e de um acordo sobre como tocá-lo. Com tanta
variedade, o instrumentista precisava desenvolver uma percepção musical boa o
suficiente para lhe permitir, em poucos minutos, saber onde estavam os tons e
semitons de sua flauta, os limites de sua tessitura e adaptar a melodia que ele
deveria tocar ao instrumento que tinha nas mãos. É desnecessário dizer que
também não existia um padrão de afinação para flautas – a altura do lá variava
de província para província, exatamente como acontecia com os demais
instrumentos. O único ponto comum que parecia existir era o seguinte: a flauta TRANSVERSAL deveria ser segurada de forma TRANSVERSAL...
Principal referência:
POWELL, Ardal. The Flute. New Heaven and London: Yale University Press, 2002.
Obrigada por dividir seu conhecimento :)
ResponderExcluir