Os instrumentos musicais aos quais chamamos, genericamente, de "flautas", podem ser dotados das mais diversas características: tamanhos, formatos, materiais, timbres e até mesmo maneiras de tocar. O elemento em comum a todos os tipos de flauta é a forma através da qual o som é produzido neles. O flautista sopra o ar contido em seus pulmões contra uma aresta, colisão que faz com que parte do ar vá para fora do instrumento e, outra parte, para dentro do mesmo. Essa divisão do ar faz com que o ar presente dentro da flauta entre em vibração, ocasionando a emissão do som. Esse é o princípio básico da formação do som da flauta. Cada tipo de flauta, porém, exige uma técnica de sopro própria para colocar o ar em seu interior em estado de vibração. Abaixo, faço um breve apanhado de alguns tipos de flauta, diferencio-os e falo um pouco sobre seus usos e variantes.
A flauta transversal (ou "flauta ocidental de concerto")
Trata-se da flauta transversal moderna (sistema Böhm), feita mais comumente de ligas metálicas e/ou madeira. Recebe este nome por ser empunhada transversalmente, ou seja, de lado. Seu nome mais preciso é "flauta ocidental de concerto", uma vez que há tipos de flautas empunhadas transversalmente que pertencem a culturas orientais e que não são utilizadas normalmente no contexto da música de concerto (música erudita, ou música clássica).
Uma flauta ocidental de concerto. O círculo preto mostra o porta lábios da flauta e o orifício do bocal. A faixa azul demonstra o local onde o flautista deve apoiar a concavidade existente entre seu lábio inferior e seu queixo. A seta vermelha aponta para o local onde o flautista deve direcionar seu sopro: para a aresta externa do orifício do bocal.
A família desse tipo de flauta contém outros instrumentos, alguns deles pouco conhecidos e de aparência um tanto inusitada.
Emmanuel Pahud interpreta "Syrinx", de Claude Debussy (1862-1918), em uma flauta soprano, a mais comum dentre as flautas ocidentais de concerto.
Ian Mullin toca duas flautas dessa família: a flauta contralto (ou "alto flute") e a flauta baixo (ou "bass flute"). A flauta contralto é maior e produz sons mais graves que a flauta soprano; a flauta baixo, por sua vez é ainda maior e produz sons ainda mais graves.
Stefan Keller toca uma flauta contrabaixo (ou "counterbass flute"). Reparem no tamanho do instrumento: emite sons ainda mais graves que os da flauta baixo.
O piccolo ou flautim
O piccolo ou flautim é um instrumento ainda muito semelhante à flauta ocidental de concerto, mas recebe um nome diferente por questão de tradição. A maneira como o ar é produzido nele é idêntica e os dedilhados são praticamente os mesmos que aqueles utilizados pelos outros tipos de flauta já descritos até então. As duas diferenças maiores são o fato de o flautim produzir sons duas vezes mais agudos que aqueles produzidos pela flauta soprano e por seu tubo ser cônico - e não cilíndrico, como é o caso das flautas modernas.
Flautim feito de metal e madeira. Repare que, diferente da flauta soprano, ele é dividido em apenas duas partes: bocal ou cabeça e corpo.
O segundo movimento do concerto em dó maior RV443 de Antonio Vivaldi (1678-1741) para flautim (originalmente, na verdade, para flauta doce sopranino - veremos mais adiante), aqui tocado por Andrea Will e Hans-André Stamm (órgão).
O traverso barroco
Trata-se ainda de um instrumento de empunhadura transversal, mas, diferente da flauta ocidental de concerto e do flautim, é uma flauta cujo uso está mais limitado à música do período barroco - daí seu nome. Dotada de apenas uma chave e feita de madeira, foi o instrumento que, aos poucos, substituiu a flauta doce dentro da música de concerto.
Um traverso barroco fabricado à semelhança dos traversos construídos por Jean-Hyacinth Rottenburgh (1672-1756).
O primeiro movimento do concerto de Brandenburgo Nº5 em ré maior BWV1050 para flauta e violino, composto pelo genial Johann Sebastian Bach (1685-1750) e tocado pelos também geniais Barthold Kuijken (traverso) e Sigiswald Kuijken (violino).
Flauta doce
A flauta doce era, na Europa, mais utilizada que a flauta transversal até meados do Renascimento. Ao longo do Renascimento e do Barroco, a flauta transversal foi, aos poucos, substituindo a flauta doce, fazendo com que ela caísse em desuso dentro do contexto da música de concerto, retornando - e, mesmo assim, pontualmente - apenas no século XX com a música contemporânea.
A flauta doce é chamada em francês de "flûte à bec", ou "flauta de bico", justamente por contar com uma embocadura com formato de bico. Esse bico canaliza o ar soprado em direção à aresta contra a qual ele deve colidir, poupando em muito o trabalho do flautista.
-
Michala Petri toca os dois primeiros movimentos do concerto em dó maior RV443 de Antonio Vivaldi (1678-1741) para flauta doce sopranino, acompanhada por orquestra.
Um quarteto de flautas doces. Da esquerda para a direita: uma tenor, uma contrabaixo, uma baixo e uma contralto. Tanto esta peça como o concerto mostrado acima atestam para a qualidade e o alto nível de dificuldade da música composta para o instrumento - muito embora a peça deste vídeo seja uma versão para quatro flautas de uma peça escrita por Vivaldi para orquestra!
Como não poderia deixar de ser, existem ainda flautas doces mais graves, como a flauta subcontrabaixo deste vídeo. Ultrapassa facilmente os dois metros de altura!
Tin whistle
"Tin whistle", ou, traduzindo literalmente, "apito de latão", é um tipo de flauta de origem irlandesa. Como o nome já diz, o material mais comum para a sua construção é o metal - via de regra, ligas metálicas mais baratas como o níquel e o cobre. O bico é feito de plástico ou de madeira. É um instrumento muito semelhante à flauta doce, mas contém menos orifícios e é limitado a tocar em apenas algumas tonalidades, de maneira que há tin whistles diferentes para cada tonalidade na qual se deseja tocar.
Mary Bergin tocando melodias de dança irlandesas em seu tin whistle.
Flauta de Pã
A flauta de Pã (ou Pan) é um instrumento cuja origem remonta à antiguidade. A lenda grega reza que a sua criação se deve ao semi-deus Pã, uma criatura de aparência metade humana e metade bode. Pã ouviu, a longe, o canto de uma ninfa. Apaixonado - ou, ao menos, sexualmente atraído por ela -, decide persegui-la. Ela, entretanto, transforma-se em uma espécie de bambu aquático, a fim de despistar o nada educado e bonito semi-deus. Pã pensou ter perdido a ninfa de vista. Mas, tão longo o vento bateu contra os fachos de bambu, o som produzido por esta colisão foi idêntico ao da bela voz da ninfa. Pã não teve dúvidas: era ela. Para poder levar seu canto para onde quer que fosse, ele, então, ceifa o bambu, e, a partir dele, monta sua flauta: a flauta de Pã. Tal ninfa chamava-se Syrinx (soa familiar?) e a tal fato deve-se o nome grego deste tipo de flauta: siringe.
Diferente das flautas descritas até agora, todas dotadas de apenas um tubo, a flauta de Pã é composta por vários tubos de tamanhos diferentes e todos eles fechados em uma das extremidades, cada um para uma nota musical. Para produzir o som, o flautista apoia o lábio inferior na quina interior dos tubos, sopra contra a quina exterior e desliza o instrumento de um lado para o outro com o auxílio das mãos, a fim de produzir notas musicais diferentes. O uso da flauta de Pã, porém, não se limitou aos gregos. Outros povos espalhados pelo mundo também a apreciavam, dentre eles os andinos, nossos vizinhos.
Daniela de Santos interpreta a tradicionalíssima "El Condor Pasa" em uma flauta de Pã.
No vídeo acima, uma curiosidade. Matthias Schulbeck, um alemão com limitações físicas, toca duas peças de Johann Sebastian Bach (1685-1750) numa flauta de pã. Trata-se dos dois últimos movimentos da suíte orquestral em si menor BWV1067, peça que requer uma técnica aprimorada. Toca melhor que inúmeros flautistas sem as mesmas limitações!
Bansuri
A bansuri é uma flauta transversal de origem indiana. Feita de bambu e contendo de seis a sete orifícios, seu tamanho pode variar de 40cm a aproximadamente um metro de comprimento. A mitologia indiana conta que Krishna tinha a bansuri como seu instrumento musical e suas melodias tinham efeitos mágicos sobre as pessoas e animais. É utilizada tanto para música religiosa quanto folclórica, mas tem assumido, nas últimas décadas, um papel interessante na música erudita indiana - "bansuris de concerto". Existe também uma variedade de bansuri dotada de bico (semelhante à flauta doce), a qual, por ser mais limitada que a bansuri transversal, tem seu uso mais restrito à música folclórica.
Dizi
A bansuri é uma flauta transversal de origem indiana. Feita de bambu e contendo de seis a sete orifícios, seu tamanho pode variar de 40cm a aproximadamente um metro de comprimento. A mitologia indiana conta que Krishna tinha a bansuri como seu instrumento musical e suas melodias tinham efeitos mágicos sobre as pessoas e animais. É utilizada tanto para música religiosa quanto folclórica, mas tem assumido, nas últimas décadas, um papel interessante na música erudita indiana - "bansuris de concerto". Existe também uma variedade de bansuri dotada de bico (semelhante à flauta doce), a qual, por ser mais limitada que a bansuri transversal, tem seu uso mais restrito à música folclórica.
Um trio: bansuri, sítara (instrumento de corda) e tabla (instrumento de percussão).
A dizi (ou di-zi) é uma flauta transversal de origem chinesa, um instrumento muito empregado na música tradicional da China. É também utilizada na ópera chinesa e nas modernas orquestras do mesmo pais. São, via de regra, feitas de bambu, mas há também modelos feitos em jade, muito apreciados por colecionadores de instrumentos antigos. Além dos orifícios destinados ao sopro e aos dedos, a dizi possuiu um outro muito peculiar, o qual é coberto por uma membrana feita de uma camada bem fina de madeira retirada do interior do bambu. Tal membrana recebe o nome de dimo e serve para dar à dizi um timbre mais brilhante e anasalado.
Neste vídeo, vários músicos chineses tocam suas dizi, as quais, assim como as nossas flautas, são feitas dos tamanhos mais variados. Eles são acompanhados por uma orquestra composta predominantemente por instrumentos típicos da China. Vale a pena ver até o final, mesmo não sabendo uma palavra de chinês!
Shakuhachi
O shakuhachi é um instrumento musical tradicional do Japão, muito embora sua origem remonte à China. Diferente da dizi, é uma flauta que se toca na vertical. Dotado de cinco orifícios e de um bocal cuja aresta externa é levemente rebaixada, é geralmente feita de bambu e sua técnica de embocadura lembra aquela da flauta de Pã. O shakuhachi pode parecer, à primeira vista, um instrumento bastante simples, mas não se engane: requer uma técnica de embocadura refinadíssima para ser tocado a contento.
Aqui, o flautista é acompanhado por um instrumento de cordas também típico da cultura japonesa: o shamisen.
Quena
Também conhecida como kena, é outra flauta típica da música andina. Como poderá observar na figura abaixo, sua estrutura é parecida com a do shakuhachi: tem uma embocadura de formato semelhante - o rebaixamento é mais pronunciado, tendo um formato de "U" -, segura-se verticalmente e, geralmente, é feita de bambu. O número de orifícios é diferente - seis, ao invés de cinco. O timbre e a maneira de tocar, porém, são perceptivelmente diferentes!
Micaela Chaque interpreta na quena e na flauta da Pã uma canção popular andina chamada "Romance de viento y quena".
Ney
Ney (ou nay) é uma variedade de flauta que figura na música de várias culturas do oriente médio. Árabes, persas, turcos e egípcios fazem uso deste instrumento há mais de quatro mil anos, data estimada por meio de iconografia encontrada nas paredes internas das pirâmides. Seu funcionamento é semelhante ao da quena e do shakuhachi, mas a posição em que é segurado é um pouco diferente: o ângulo é mais oblíquo. Neys variam bastante em tamanho e podem ter de seis a sete orifícios, mas o material em que são feitas é, via de regra, o bambu.
Didgeridoo
Ney (ou nay) é uma variedade de flauta que figura na música de várias culturas do oriente médio. Árabes, persas, turcos e egípcios fazem uso deste instrumento há mais de quatro mil anos, data estimada por meio de iconografia encontrada nas paredes internas das pirâmides. Seu funcionamento é semelhante ao da quena e do shakuhachi, mas a posição em que é segurado é um pouco diferente: o ângulo é mais oblíquo. Neys variam bastante em tamanho e podem ter de seis a sete orifícios, mas o material em que são feitas é, via de regra, o bambu.
Ney egípcia acompanhada por percussão.
Didgeridoo
A classificação do didgeridoo tende a gerar confusão entre algumas pessoas. Também conhecido como didjeridu, é um instrumento de sopro utilizado por aborígenes australianos há cerca de mil e quinhentos anos, mas não há fontes que possam dar uma idade mais precisa ao instrumento. Sua estrutura é semelhante à de algumas flautas flauta e, por isso, muitos o consideram como sendo mais um tipo de flauta. Sua técnica de produção de som - que é aquilo que de fato conta em termos de qualificação de instrumentos musicais -, entretanto, aproxima-o muito mais de um trompete! O didgeridoo poderia ser considerado, no máximo e com muita boa vontade, um primo muito distante da flauta - o que não desmerece o instrumento de nenhuma maneira.
O som é produzido através do sopro E da vibração dos lábios do instrumentista. Tocar o didgeridoo demanda, obrigatoriamente, uma técnica de respiração chamada de respiração circular (a qual é utilizada também por outros instrumentistas de sopro, muitas vezes de forma facultativa), a qual permite ao instrumentista sustentar um som por tempo indeterminado. Há gravações de instrumentistas que tocaram o instrumento por mais de 40 minutos sem interrupção! O didgeridoo é feito de madeiras diversas e pode variar muito em tamanho: de 1,2m a 3m. Seu formato também pode variar um pouco, desde um formato cilíndrico até um formato mais cônico, com o diâmetro do tubo aumentando à medida que chegamos à extremidade do instrumento oposta àquela onde se sopra.
Jeremy Donovan tocando seu didgeridoo.
Zurnas.
Zurna
A zurna, assim como a ney, é um instrumento musical presente na música de vários povos do oriente médio. Trata-se daquele instrumento de sopro que muitos associam com os encantadores de serpentes. A zurna, entretanto, não é uma flauta, ao contrário do que muitos pensam. Seu funcionamento é mais semelhante ao de um oboé. Feita geralmente da madeira dos pés de damasco, ela é dotada de oito orifícios para os dedos e o orifício através do qual o instrumentista sopra possui uma palheta dupla - daí sua semelhança com o oboé.
"... civilização não é algo absoluto, mas (...) é relativa
e nossas ideias e concepções são verdadeiras
apenas na medida de nossa civilização."
Franz Boas
Parabéns, gostei muito do seu post acerca dos vários tipos de flautas, ou assemelhados (já que o instrumento aborígene australiano é muuuito singular). Obrigado pelo texto bastante instrutivo! Apesar de achar os instrumentos de sopro um tanto primitivos, vê-se que tentou-se dar um "up-grade" neles!
ResponderExcluirContinue brindando-nos com os excertos musicais selecionados e as matérias!
Obrigado por seu comentário e por seus elogios, caro Anonyme.
ResponderExcluirApenas gostaria de fazer uma pequena ressalva ao que disse: além do relativismo cultural (citado ao final da presente postagem), há também o relativismo temporal...
Parabéns! O post realmente está bem completo. Ainda não havia encontrado um como este aqui.
ResponderExcluirMeu filho de 12 anos pediu-me uma flauta transversa de natal, este ano ele foi apresdentado à música, na escola, via flauta doce (yamaha0, ficou encantado. Como neófito, fiquei assustado com o preço nas lojas que visitei (R$ 4mil). Achei este site pesquisando e tentando entender um pouco mais sobre o instrumento, achei maravilhoso e agradeço a gentileza de disponibilizar essas informações, neste formato acessível a leigos.
ResponderExcluirBelo trabalho. Valeu a pena estar acordado até essa hora, pois há muito tempo queria saber sobre esse maravilhoso instrumento, mesmo não sabendo tocar nada.Muito obrigado!!!
ResponderExcluirÓtimo post!!!!!!!!! Muito instrutivo, poderia inclur a flauta chinesa chamada Hulusi??? abraços!
ResponderExcluirPoxa to admirada com td o que eu vi parabens
ResponderExcluir