Jacques-Martin Hotteterre (1680?-1760?)
pertenceu a uma família de renomados instrumentistas e luthiers de instrumentos
de sopro. Conhecido também como Hotteterre “le Romain” – para diferenciá-lo de
um parente com o mesmo nome –, muitos creditam a Jacques-Martin a “invenção” do
traverso barroco de uma chave só. Um dos flautistas mais proeminentes de seu
tempo, Hotteterre era presença frequente em sessões privadas de música na corte
do Rei Sol, Luis XIV.
No vídeo acima, é possível ver e
ouvir um “traverso Hotteterre”. O pai de Hotteterre “le Romain”, Martin, já
construía flautas nesse estilo, passando para seu filho e aprendiz o conhecimento
de construção da mesma. É importante ressaltar que não há documentação histórica
que sugira que a flauta transversal de uma chave tenha sido produto da
inventividade de apenas uma pessoa ou clã, de forma que não se pode creditar a
um homem apenas ou até mesmo a uma família a “invenção” de tal instrumento.
Deixando isso de lado, o tipo de flauta que chamamos hoje de “traverso
Hotteterre” representa bem o instrumento em voga no princípio do barroco
francês. O Landesmuseum Johanneum,
localizado em Graz, abriga uma flauta fabricada muito provavelmente por Martin
Hotteterre (pai de “le Romain”), afinada com o lá em 392hz. As flautas
Hotteterre presentes em museus em Berlim e em São Petersburgo (A=400hz) foram
avaliadas como réplicas feitas no século XVIII.
PRINCIPES DE LA FLUTE TRAVERSIERE, OU FLUTE D’ALLEMAGNE.
DE LA FLUTE A BEC, OU FLUTE DOUCE, ET DU HAUT-BOIS, DIVISEZ PAR TRAITEZ.
“Princípios da flauta transversal, ou
flauta alemã. Da flauta de bico, ou flauta doce, e do oboé, divididos em
tratados”. Esse é o título da publicação feita por Jacques-Martin Hotteterre em
1707. Não se espante! A publicação trata mesmo da flauta doce e do oboé, além
de tratar da flauta transversal. O tratado é dividido em três partes, uma para
cada instrumento. A primeira parte é a que trata da flauta transversal.
CAPÍTULO I – Da situação do corpo e da
posição das mãos
Hotteterre escreve: “Como é necessária
para que se alcance a perfeição a prática de exercícios nos quais seja possível
unir a graciosidade à habilidade, começarei este tratado com uma explicação
acerca da postura que deve ser mantida ao tocar a flauta transversal.”. Estando
o flautista sentado ou de pé, é aconselhado que este mantenha uma postura
ereta, sua cabeça mais levantada do que abaixada e um pouco virada na direção
do ombro esquerdo. As mãos devem permanecer numa posição elevada, mas sem
levantar os cotovelos e os ombros. O indicador da mão esquerda permanece
dobrado para dentro e o braço esquerdo deve permanecer próximo ao corpo. Caso o
flautista esteja de pé, o pé esquerdo fica à frente e o peso do corpo é apoiado
no quadril direito – “tudo isso sem qualquer tensão”, diz Hotteterre. O autor
também enfatiza que, ao tocar, deve-se evitar movimentar o corpo e a cabeça com
intuito de marcar os tempos do compasso.
A imagem acima está presente na
repartição do tratado dedicada à flauta transversal, logo no primeiro capítulo.
É a ela que se deve fazer referência ao ler as indicações posturais dadas pelo
autor: as letras presentes na imagem estão relacionadas com as letras no trecho
transcrito que se segue. Mas lembre-se: a peruca é opcional!
“É necessário colocar a mão esquerda (A) no alto [da flauta; ou seja, nos
orifícios da flauta mais próximos do bocal]. Segurar a flauta entre o polegar e
o primeiro dedo (B). Dobrar o
indicador para baixo. Armar os dedos de forma que o primeiro e o segundo
[indicador e médio] fiquem um pouco arredondados e o terceiro [anelar] ligeiramente mais
alongado. No que diz respeito à mão direita (C), é necessário manter os dedos quase retos: o indicador
levemente dobrado para dentro e o polegar diretamente abaixo do dedo do quarto
orifício [o próprio indicador da mão direita] ou um pouco mais abaixo[*]. O dedo mínimo permanece acima da
flauta, entre o sexto orifício e a chave que há no pé (...). Deve-se segurar a
flauta quase que reta, inclinando-a um pouco na direção do pé [da flauta] (D).” (* É importante esclarecer que
Hotteterre usa os termos “alto” e “baixo” para expressar distâncias relativas
ao orifício do bocal da flauta. Uma posição “alta” é aquela que está mais perto
do bocal; uma mais “baixa” está mais afastada dele e, portanto, mais próxima do
pé da flauta. Assim, no trecho acima, quando Hotteterre diz que o polegar da
mão direita pode ficar um pouco mais “abaixo”, ele quer dizer que o polegar
pode ficar, na realidade, um pouco mais à direita ou, em outras palavras, um
pouco mais perto do pé da flauta.)
CAPÍTULO II – Da embocadura
Hotetterre já começa esse capítulo
reconhecendo a dificuldade que é discutir apenas com palavras esse assunto tão
delicado da prática flautística: a embocadura. Como forma de amenizar um pouco
a impossibilidade de demonstrar claramente como ela deveria ser feita, ele pede
que o leitor se remeta à imagem presente no primeiro capítulo. Não obstante,
ele sabe que, em se tratando desse tópico, nenhum método escrito tem a mesma
eficiência que o contato pessoal com um professor.
Hotetterre aconselha que o leitor faça
sua embocadura através do método que hoje conhecemos como “sorriso forçado”:
“Não se deve projetar os lábios. Pelo contrário: deve-se repuxá-los com os
cantos da boca, de forma a deixá-los unidos e aplainados.”. Em seguida, ele
recomenda que, na frente de um espelho, o leitor gire a flauta para dentro e
para fora ao mesmo tempo em que sopra moderadamente, a fim de encontrar o ponto onde a
flauta ressoa melhor.
CAPÍTULOS III, IV, V E VI – Dedilhados e
trinados
Os capítulos terceiro, quarto, quinto e
sexto tratam dos dedilhados empregados para a emissão das notas musicais e dos
dedilhados empregados para a execução de trinados. Hotteterre tem a atenção de
escrever um pouco sobre dedilhados que geram as notas musicais de emissão mais
difícil e/ou que necessitam de ajustes da embocadura a fim de corrigir suas
respectivas afinações, além de dar algumas dicas para facilitar a execução de
alguns trinados mais complicados.
Acima, a tabela de dedilhados para
sustenidos e bemóis. Duas coisas são dignas de nota na tabela acima. A primeira
e mais simples delas é a posição da clave de sol: ela está na segunda linha da
pauta (sua posição mais usual na música para traverso barroco) e não na
terceira (posição da música para a nossa flauta moderna). A segunda delas é o
fato de que Hotteterre faz questão de dividir os sustenidos e bemóis:
sustenidos na escala ascendente, bemóis na escala descendente. Apesar da
divisão, o leitor poderá observar que os dedilhados para as notas sustenidas e
seus respectivos bemóis são idênticos. Naquela época, porém, o sistema de
afinação por temperamento igual ainda não era a norma, de forma que Hotteterre,
através dessa divisão, demonstra que ele não pensava enarmonicamente, não adotando a afinação por temperamento igual.
Acima, a tabela de dedilhados para
trinados. Há também algo de interessante a ser notado aqui. Aquilo que hoje
conhecemos como trinados recebia nomes diferentes naquela época: tremblement (“tremor”) e cadence, (“cadência”, mesmo). Este
último termo levanta suposições interessantes acerca de seu emprego. A mais
comumente aceita é o fato de que tal tipo de embelezamento ou adorno musical
tinha presença quase obrigatória em momentos cadenciais da música. As "cadences" eram assinaladas na partitura
por meio de uma pequena cruz acima da nota onde deveriam ser executadas,
conforme é possível ver na tabela acima.
Um exemplo sobre como interpretar a
tabela acima:
---Cadences
sur le ré (“trinados sobre a nota ré”)---
Observe que há quatro tipos de trinados
possíveis feitos sobre a nota ré: dois sobre o ré natural e dois sobre o ré
sustenido. Como era de praxe na época, os trinados sempre começam pela nota
superior, de forma que há, para o ré natural, um trinado que começa do mi
natural e um que começa do mi bemol; para o ré sustenido, um trinado que começa
do mi natural e outro que começa do mi sustenido. Isso totaliza os quatro
trinados possíveis sobre a nota ré, demonstrados na tabela.
Observe o primeiro deles, começando com
o mi natural e repousando em ré natural. O primeiro dedilhado mostra em qual
posição se deve atacar o mi natural, ou seja, em qual posição se deve começar o
trinado. O segundo dedilhado mostra duas coisas: em qual posição se deve
terminar o trinado e qual (ou quais) dos dedos deve(m) trinar – ou, em outras
palavras, qual (ou quais!) dos orifícios da flauta deve(m) ser aberto(s) e
fechado(s) alternadamente, a fim de gerar o efeito do trinado. Tal (ou tais)
orifício(s) é (são) indicado(s) por meio de uma “ligadura” presente na tabela
de dedilhados e um rabisco que cruza o desenho do(s) orifício(s).
Assim sendo, o trinado de ré natural,
começando com o mi natural, é feito atacando primeiro a nota mi em sua posição
original e, em seguida, levantando e abaixando alternadamente o dedo do sexto
orifício da flauta (o anelar da mão direita), até que o trinado pare na posição
de ré natural. Já o trinado de ré sustenido, começando também o mi natural,
começa também atacando o mi na posição original; mas, logo em seguida, o sétimo
orifício deve ser aberto (através da ação da chave do dedo mínimo da mão
direita) e dedo do sexto orifício deve trinar (novamente, o anelar da mão
direita).
* * *
Antes de terminar esta postagem que
trata dos seis primeiros capítulos do tratado de flauta transversal de
Jacques-Martin Hotteterre, é muito importante frisar algo sobre as tabelas de
dedilhados e trinados. Elas não representam, de maneira alguma, um sistema
padrão para traversos barrocos. Muito embora vários desses dedilhados funcionem
bem em traversos de fabricantes diferentes e de fases diferentes do período
barroco, eles foram pensados de forma mais específica para o tipo de flauta
construída pelos Hotteterre. A verdade é que não há regras absolutas naquilo
que diz respeito aos dedilhados. O traversista deve conhecer os dedilhados mais
comumente utilizados, mas, ao mesmo tempo, deve experimentar alternativas. Cada
traverso, mesmo que tenha sido fabricado pelo mesmo luthier, tem suas
particularidades de afinação e de timbre; portanto, alguns dos dedilhados
empregados mais corriqueiramente podem não ter um efeito tão bom quanto
dedilhados alternativos descobertos através da experimentação do traversista.
Não se espante com isso: até mesmo ao tocar determinadas passagens com nossas
flautas de sistema Böhm nos vemos forçados a buscar por dedilhados que fogem
daquilo que é considerado como padrão – seja para proporcionar mais agilidade
ao movimento dos dedos, para corrigir problemas de afinação ou então para
provocar mudanças de cor de som. Dedilhados alternativos não devem ser tratados
como tabu! A história da flauta nos demonstra que eles foram e continuam sendo
muito bem vindos em nossa performance.
Principais fontes:
HOTTETERRE, Jacques-Martin. Principes de la flute traversiere, ou flute d'allemagne. De la flute a bec, ou flute douce, et du haut-bois, divisez par Traitez. Paris: C. Ballard, 1707. Fac-simile presente em: Fac-símile presente em: SAINT-ARROMAN, Jean. Méthodes & Traités: Flûte Traversière - France 1600-1800. Vol.I. p.17-31. 3ªEd. Bressuire: Anne Fuzeau Productions, 2001.
POWELL, Ardal. The Flute. New Heaven and London: Yale University Press, 2002.
SOLUM, John. The early flute . Oxford: Oxford University Press, 1992.
HOTTETERRE, Jacques-Martin. Principes de la flute traversiere, ou flute d'allemagne. De la flute a bec, ou flute douce, et du haut-bois, divisez par Traitez. Paris: C. Ballard, 1707. Fac-simile presente em: Fac-símile presente em: SAINT-ARROMAN, Jean. Méthodes & Traités: Flûte Traversière - France 1600-1800. Vol.I. p.17-31. 3ªEd. Bressuire: Anne Fuzeau Productions, 2001.
POWELL, Ardal. The Flute. New Heaven and London: Yale University Press, 2002.
SOLUM, John. The early flute . Oxford: Oxford University Press, 1992.