quinta-feira, 28 de março de 2013

Jacques-Martin Hotteterre – Principes de la Flute Traversiere (1707) – Primeira Parte (Capítulos I a VI)




Jacques-Martin Hotteterre (1680?-1760?) pertenceu a uma família de renomados instrumentistas e luthiers de instrumentos de sopro. Conhecido também como Hotteterre “le Romain” – para diferenciá-lo de um parente com o mesmo nome –, muitos creditam a Jacques-Martin a “invenção” do traverso barroco de uma chave só. Um dos flautistas mais proeminentes de seu tempo, Hotteterre era presença frequente em sessões privadas de música na corte do Rei Sol, Luis XIV. 



No vídeo acima, é possível ver e ouvir um “traverso Hotteterre”. O pai de Hotteterre “le Romain”, Martin, já construía flautas nesse estilo, passando para seu filho e aprendiz o conhecimento de construção da mesma. É importante ressaltar que não há documentação histórica que sugira que a flauta transversal de uma chave tenha sido produto da inventividade de apenas uma pessoa ou clã, de forma que não se pode creditar a um homem apenas ou até mesmo a uma família a “invenção” de tal instrumento. Deixando isso de lado, o tipo de flauta que chamamos hoje de “traverso Hotteterre” representa bem o instrumento em voga no princípio do barroco francês. O Landesmuseum Johanneum, localizado em Graz, abriga uma flauta fabricada muito provavelmente por Martin Hotteterre (pai de “le Romain”), afinada com o lá em 392hz. As flautas Hotteterre presentes em museus em Berlim e em São Petersburgo (A=400hz) foram avaliadas como réplicas feitas no século XVIII.



PRINCIPES DE LA FLUTE TRAVERSIERE, OU FLUTE D’ALLEMAGNE. DE LA FLUTE A BEC, OU FLUTE DOUCE, ET DU HAUT-BOIS, DIVISEZ PAR TRAITEZ.



“Princípios da flauta transversal, ou flauta alemã. Da flauta de bico, ou flauta doce, e do oboé, divididos em tratados”. Esse é o título da publicação feita por Jacques-Martin Hotteterre em 1707. Não se espante! A publicação trata mesmo da flauta doce e do oboé, além de tratar da flauta transversal. O tratado é dividido em três partes, uma para cada instrumento. A primeira parte é a que trata da flauta transversal.



CAPÍTULO I – Da situação do corpo e da posição das mãos

Hotteterre escreve: “Como é necessária para que se alcance a perfeição a prática de exercícios nos quais seja possível unir a graciosidade à habilidade, começarei este tratado com uma explicação acerca da postura que deve ser mantida ao tocar a flauta transversal.”. Estando o flautista sentado ou de pé, é aconselhado que este mantenha uma postura ereta, sua cabeça mais levantada do que abaixada e um pouco virada na direção do ombro esquerdo. As mãos devem permanecer numa posição elevada, mas sem levantar os cotovelos e os ombros. O indicador da mão esquerda permanece dobrado para dentro e o braço esquerdo deve permanecer próximo ao corpo. Caso o flautista esteja de pé, o pé esquerdo fica à frente e o peso do corpo é apoiado no quadril direito – “tudo isso sem qualquer tensão”, diz Hotteterre. O autor também enfatiza que, ao tocar, deve-se evitar movimentar o corpo e a cabeça com intuito de marcar os tempos do compasso.



A imagem acima está presente na repartição do tratado dedicada à flauta transversal, logo no primeiro capítulo. É a ela que se deve fazer referência ao ler as indicações posturais dadas pelo autor: as letras presentes na imagem estão relacionadas com as letras no trecho transcrito que se segue. Mas lembre-se: a peruca é opcional!



“É necessário colocar a mão esquerda (A) no alto [da flauta; ou seja, nos orifícios da flauta mais próximos do bocal]. Segurar a flauta entre o polegar e o primeiro dedo (B). Dobrar o indicador para baixo. Armar os dedos de forma que o primeiro e o segundo [indicador e médio] fiquem um pouco arredondados e o terceiro [anelar] ligeiramente mais alongado. No que diz respeito à mão direita (C), é necessário manter os dedos quase retos: o indicador levemente dobrado para dentro e o polegar diretamente abaixo do dedo do quarto orifício [o próprio indicador da mão direita] ou um pouco mais abaixo[*]. O dedo mínimo permanece acima da flauta, entre o sexto orifício e a chave que há no pé (...). Deve-se segurar a flauta quase que reta, inclinando-a um pouco na direção do pé [da flauta] (D).” (* É importante esclarecer que Hotteterre usa os termos “alto” e “baixo” para expressar distâncias relativas ao orifício do bocal da flauta. Uma posição “alta” é aquela que está mais perto do bocal; uma mais “baixa” está mais afastada dele e, portanto, mais próxima do pé da flauta. Assim, no trecho acima, quando Hotteterre diz que o polegar da mão direita pode ficar um pouco mais “abaixo”, ele quer dizer que o polegar pode ficar, na realidade, um pouco mais à direita ou, em outras palavras, um pouco mais perto do pé da flauta.)



CAPÍTULO II – Da embocadura

Hotetterre já começa esse capítulo reconhecendo a dificuldade que é discutir apenas com palavras esse assunto tão delicado da prática flautística: a embocadura. Como forma de amenizar um pouco a impossibilidade de demonstrar claramente como ela deveria ser feita, ele pede que o leitor se remeta à imagem presente no primeiro capítulo. Não obstante, ele sabe que, em se tratando desse tópico, nenhum método escrito tem a mesma eficiência que o contato pessoal com um professor.



Hotetterre aconselha que o leitor faça sua embocadura através do método que hoje conhecemos como “sorriso forçado”: “Não se deve projetar os lábios. Pelo contrário: deve-se repuxá-los com os cantos da boca, de forma a deixá-los unidos e aplainados.”. Em seguida, ele recomenda que, na frente de um espelho, o leitor gire a flauta para dentro e para fora ao mesmo tempo em que sopra moderadamente, a fim de encontrar o ponto onde a flauta ressoa melhor.



CAPÍTULOS III, IV, V E VI – Dedilhados e trinados

Os capítulos terceiro, quarto, quinto e sexto tratam dos dedilhados empregados para a emissão das notas musicais e dos dedilhados empregados para a execução de trinados. Hotteterre tem a atenção de escrever um pouco sobre dedilhados que geram as notas musicais de emissão mais difícil e/ou que necessitam de ajustes da embocadura a fim de corrigir suas respectivas afinações, além de dar algumas dicas para facilitar a execução de alguns trinados mais complicados.



Acima, a tabela de dedilhados para sustenidos e bemóis. Duas coisas são dignas de nota na tabela acima. A primeira e mais simples delas é a posição da clave de sol: ela está na segunda linha da pauta (sua posição mais usual na música para traverso barroco) e não na terceira (posição da música para a nossa flauta moderna). A segunda delas é o fato de que Hotteterre faz questão de dividir os sustenidos e bemóis: sustenidos na escala ascendente, bemóis na escala descendente. Apesar da divisão, o leitor poderá observar que os dedilhados para as notas sustenidas e seus respectivos bemóis são idênticos. Naquela época, porém, o sistema de afinação por temperamento igual ainda não era a norma, de forma que Hotteterre, através dessa divisão, demonstra que ele não pensava enarmonicamente, não adotando a afinação por temperamento igual.




Acima, a tabela de dedilhados para trinados. Há também algo de interessante a ser notado aqui. Aquilo que hoje conhecemos como trinados recebia nomes diferentes naquela época: tremblement (“tremor”) e cadence, (“cadência”, mesmo). Este último termo levanta suposições interessantes acerca de seu emprego. A mais comumente aceita é o fato de que tal tipo de embelezamento ou adorno musical tinha presença quase obrigatória em momentos cadenciais da música. As "cadences" eram assinaladas na partitura por meio de uma pequena cruz acima da nota onde deveriam ser executadas, conforme é possível ver na tabela acima.



Um exemplo sobre como interpretar a tabela acima:

---Cadences sur le ré (“trinados sobre a nota ré”)---

Observe que há quatro tipos de trinados possíveis feitos sobre a nota ré: dois sobre o ré natural e dois sobre o ré sustenido. Como era de praxe na época, os trinados sempre começam pela nota superior, de forma que há, para o ré natural, um trinado que começa do mi natural e um que começa do mi bemol; para o ré sustenido, um trinado que começa do mi natural e outro que começa do mi sustenido. Isso totaliza os quatro trinados possíveis sobre a nota ré, demonstrados na tabela.



Observe o primeiro deles, começando com o mi natural e repousando em ré natural. O primeiro dedilhado mostra em qual posição se deve atacar o mi natural, ou seja, em qual posição se deve começar o trinado. O segundo dedilhado mostra duas coisas: em qual posição se deve terminar o trinado e qual (ou quais) dos dedos deve(m) trinar – ou, em outras palavras, qual (ou quais!) dos orifícios da flauta deve(m) ser aberto(s) e fechado(s) alternadamente, a fim de gerar o efeito do trinado. Tal (ou tais) orifício(s) é (são) indicado(s) por meio de uma “ligadura” presente na tabela de dedilhados e um rabisco que cruza o desenho do(s) orifício(s).



Assim sendo, o trinado de ré natural, começando com o mi natural, é feito atacando primeiro a nota mi em sua posição original e, em seguida, levantando e abaixando alternadamente o dedo do sexto orifício da flauta (o anelar da mão direita), até que o trinado pare na posição de ré natural. Já o trinado de ré sustenido, começando também o mi natural, começa também atacando o mi na posição original; mas, logo em seguida, o sétimo orifício deve ser aberto (através da ação da chave do dedo mínimo da mão direita) e dedo do sexto orifício deve trinar (novamente, o anelar da mão direita).



* * *



Antes de terminar esta postagem que trata dos seis primeiros capítulos do tratado de flauta transversal de Jacques-Martin Hotteterre, é muito importante frisar algo sobre as tabelas de dedilhados e trinados. Elas não representam, de maneira alguma, um sistema padrão para traversos barrocos. Muito embora vários desses dedilhados funcionem bem em traversos de fabricantes diferentes e de fases diferentes do período barroco, eles foram pensados de forma mais específica para o tipo de flauta construída pelos Hotteterre. A verdade é que não há regras absolutas naquilo que diz respeito aos dedilhados. O traversista deve conhecer os dedilhados mais comumente utilizados, mas, ao mesmo tempo, deve experimentar alternativas. Cada traverso, mesmo que tenha sido fabricado pelo mesmo luthier, tem suas particularidades de afinação e de timbre; portanto, alguns dos dedilhados empregados mais corriqueiramente podem não ter um efeito tão bom quanto dedilhados alternativos descobertos através da experimentação do traversista. Não se espante com isso: até mesmo ao tocar determinadas passagens com nossas flautas de sistema Böhm nos vemos forçados a buscar por dedilhados que fogem daquilo que é considerado como padrão – seja para proporcionar mais agilidade ao movimento dos dedos, para corrigir problemas de afinação ou então para provocar mudanças de cor de som. Dedilhados alternativos não devem ser tratados como tabu! A história da flauta nos demonstra que eles foram e continuam sendo muito bem vindos em nossa performance.


Principais fontes:
HOTTETERRE, Jacques-Martin. Principes de la flute traversiere, ou flute d'allemagne. De la flute a bec, ou flute douce, et du haut-bois, divisez par Traitez. Paris: C. Ballard, 1707. Fac-simile presente em: Fac-símile presente em: SAINT-ARROMAN, Jean. Méthodes & Traités: Flûte Traversière - France 1600-1800. Vol.I. p.17-31. 3ªEd. Bressuire: Anne Fuzeau Productions, 2001.
POWELL, Ardal. The Flute. New Heaven and London: Yale University Press, 2002.
SOLUM, John. The early flute . Oxford: Oxford University Press, 1992. 

terça-feira, 12 de março de 2013

Marin Mersenne: Harmonie Universelle (1636) - The transverse flute and the recorder

Marin Marsenne (1555-1648) was a French born theologist, priest, philosopher, mathematician and musical theorist. He played an important role in the dissemination of the scientific and philosophical production of his time: he maintained correspondence with Descartes, Galileo, Pascal, and Torricelli (among others). His main contribution to music was a treatise titled "Harmonie Universelle" (1636), which deals with many theoretical and practical aspects of seventeenth-century music - just like a great musical encyclopedia. In this post, I will relate to the definitions of "transverse flute" and "recorder" given by the author.



Transverse flute ("Fluste d'Allemand")

The entry which deals with the transverse flute is titled "Fluste d'Allemand" (if you recall it, the transverse flute was known at that time and in the majority of European countries as "german flute" - if not, go to the post related to the flute in the Middle Ages). Mersenne gives its measures and writes about its basic technical principles: how to hold the flute and how to blow inside of it. He also provides a fingering chart for it.

But even before talking about the transverse flute, Mersenne's concern is to make it clear that the fluste d'Allemand is a completely different instrument from the "Flageollet" (written in some publications with a single "L" instead of a double one). The French version of the flageollet is very similar to the recorder: 

This is an English flageolet. Its sound is very similar to that of an Irish tin whistle. 

On the video posted above, we can hear and see a "double flageolet". Its shape resembles more closely that of an English flageolet. Its sound is somewhere between that of a recorder and an Irish tin whistle.

The precedent image can be found in Mersenne's treatise. The letters and numbers contained in it are there to help the reader to understand what Mersenne wrote: "Even if some people prefer to put this kind of flute in the same category of the Flageollet because they both have six holes to be stopped with the fingers, I chose not to do the same because the embouchure hole is not located in the A B region (as it can be observed in the flutes of the other kind), but in the I hole (...). The embouchure is achieved by placing the inferior lip by the border of that hole and pushing the air rather softly into it.". The author sustains that the embouchure needed to play the transverse flute is more difficult to learn than the embouchure needed to play the flageolet and other similar flutes.

Mersenne also talks about which materials could be used to make transverse flutes. Wood was more commonly employed, especially that of the plum and cherry trees. Ebony was also appreciated. Besides wood, glass and crystal could be used, even though more rarely. Still on the subject of the physical characteristics of the flute, Mersenne provides us with measurements for the holes' diameters, for the distance between them, and for the tube's diameter. But Ardal Powell (The Flute, 2002), sustains that some of those measurements are not accurate. The flute described by Mersenne is, supposedly, a flute in G, but the provided fingering chart seems to relate to a flute in D - and the given distance between each of the finger-holes doesn't seem to correspond with neither instrument. The same fingering chart could be used, according to its author, by those who play the fife ("Fifre"). Mersenne writes that the fifre and the transverse flute are two very similar instruments, differing only in sonority (the tone of the fifre being more piercing and lively) but not in technique.


Recorder ("Fluste d'Angleterre")

The entry which deals with the recorder is called “Fluste d’Angleterre” (“english flute"), also known as “Fluste douce” (“sweet flute”) and nine-hole flute. Its first name is due to the fact that it was first introduced in French territory by an unknown English king. Its second name was inspired by its sweet tone. The origin of its third name is rather obvious: that flute had, indeed, nine finger-holes. Today, this kind of flute is known as “flûte à bec” (“flute with a beak”) by the French.


The flute described by Mersenne could be played by right and left-handed musicians: the last finger-hole (the one located at the end of the flute’s foot joint) was doubled, making it possible for both kinds of flutists to reach it. Mersenne affirms that the recorder and the “Flageollet” had the same extension (a 15th, approximately).


This image can be found in Mersenne’s “Harmonie”. Its shows many musical instruments, most of them recorders. The letters written on the image are meant to help the reader to have a better understanding of which instrument was Mersenne talking about. The instrument pointed by a green arrow is a recorder in its more familiar shape. The blue arrows show a less known kind of recorder. According to the author, that instrument could be 7 or 8 feet long. The blue oval shows a kind of resonating chamber which hides some of the toneholes from our view. Those toneholes are stopped by the action of a key for the small finger. That key is doubled, a feature that allows right and left-handed flutists to play the instrument. Watch the following video to see and to hear this overgrown flute.

This entry mentions a very curious technique. Mersenne points out rather naturally that the natural extension of the recorder can be expanded if the flutists sings and plays at the same time, “for the wind which leaves the mouth while one sings is capable of sounding the flute, making it possible for a single man to play a Duo”. It is interesting to notice that such technique was not mentioned in the entry which deals with the transverse flute. The author mentions solely the possibility to build transverse flutes with two tubes, an invention that would allow a flutist to play a duet without the help of another musician. Maybe Mersenne hadn't met a flutist capable of applying the sing-while-playing technique to the transverse flute with equal success as it was applied to the recorder. It can be inferred that Mersenne thought that such technique could disturb the kind of embouchure needed to play the transverse flute and, therefore, it couldn't be used. Nevertheless, it is worthy of notice that in 1636 a technique that still sounds rather strange to some 21th century listeners was not a stranger to Mersenne and his contemporaries.

Principais fontes:
MERSENNE, Marin. Harmonie Universelle. Paris: 1636. Fac-símile presente em: SAINT-ARROMAN, Jean. Méthodes & Traités: Flûte à Bec - Europe 1500-1800. Vol.I. p.165-168. 3ªEd. Bressuire: Anne Fuzeau Productions, 2001.
MERSENNE, Marin. Harmonie Universelle. Paris: 1636. Fac-símile presente em: SAINT-ARROMAN, Jean. Méthodes & Traités: Flûte Traversière - France 1600-1800. Vol.I. p.7-10. 3ªEd. Bressuire: Anne Fuzeau Productions, 2001.
POWELL, Ardal. The Flute. New Heaven and London: Yale University Press, 2002.

domingo, 12 de agosto de 2012

Marin Mersenne: Harmonie Universelle (1636) - A flauta transversal e a flauta doce

Marin Mersenne (1555-1648) foi um teólogo, padre, filósofo, matemático e teórico musical nascido na França. Foi uma figura importante para a divulgação da produção científica e filosófica de sua época, uma vez que ele mantinha correspondência com vários pensadores importantes daquele tempo, dentre eles Descartes, Galileu, Pascal e Torricelli. No campo da música, sua maior contribuição foi o tratado intitulado "Harmonie Universelle". Publicado no ano de 1636, o "Harmonie" trata sobre vários aspectos práticos e teóricos da música do século XVII, funcionando como uma grande enciclopédia voltada para o assunto. Nesta postagem, tratarei dos verbetes relacionados à flauta transversal e à flauta doce contidos na obra em questão.


Flauta transversal ("Fluste d'Allemand")

O verbete que fala sobre a flauta transversal declara ter como propósito fornecer informações sobre a "Fluste d'Allemand" (se o leitor se recorda bem, a flauta transversal daquela época era conhecida na maioria dos países europeus como "flauta alemã" - ver postagem sobre a flauta na Idade Média). Mersenne escreve sobre as medidas da flauta, além de falar sobre seus princípios básicos de funcionamento: como segurá-la e como conduzir o ar para dentro dela, trazendo também uma tablatura de dedilhados para a produção das notas.

Antes mesmo de começar a falar sobre a flauta transversa, o autor se preocupa em deixar claro que esse tipo de flauta é diferente de um instrumento conhecido como "Flageollet" (em algumas publicações grafado com apenas um "L" no lugar dos dois "L's"), cuja versão francesa, por sua vez, é bastante semelhante à flauta doce:
Esse é um flageolet inglês. Seu som é bem próximo àquele de um tin whistle irlandês.

No vídeo acima, uma demonstração de um "flageolet duplo", o qual se assemelha mais ao modelo inglês de flageolet. Note que o som parece estar entre o som da flauta doce e do tin whistle irlandês (ver postagem sobre os diversos tipos de flauta).


A imagem acima pertence à publicação de Mersenne. As letras e números nela contidos servem para orientar o leitor: "Mesmo que algumas pessoas costumem colocar esse tipo de flauta na categoria do Flageollet por conta deste ter, assim como ela, seis orifícios a serem tapados, preferi colocá-la à parte pelo fato de que a embocadura não se encontra na região A B como acontece nas demais, mas sim no orifício I (...). A embocadura é feita colocando o lábio inferior na borda do primeiro orifício e empurrando o ar bem suavemente para dentro dele.". O autor defende que a embocadura da flauta transversal é bem mais difícil de ser aprendida do que a embocadura das flautas semelhantes ao flageolet. 

Mersenne fala um pouco sobre quais materiais poderiam ser utilizados para fabricar flautas transversais. O material mais usual era a madeira, variando, preferencialmente, entre a do pé de ameixa e da cerejeira. O ébano também poderia ser utilizado. Além da madeira, poderiam ser usados o cristal e o vidro, mas exemplos de flautas nesses materiais são bem mais raros. Ainda falando sobre aspectos físicos da flauta, ele fornece uma série de medidas para os diâmetros dos orifícios, para as distâncias entre eles e para o diâmetro de seu tubo. Ardal Powell, em seu "The Flute", porém, argumenta que há algumas falhas nas medidas dadas: Mersenne fala de uma flauta supostamente afinada em sol, mas a extensão dada pela tablatura de dedilhados parece remeter a uma flauta em ré, enquanto que a distância dada para o espaço entre os orifícios da flauta não corresponde a nenhum dos dois instrumentos. A propósito, a tablatura de dedilhados presente no verbete serve também àquele que toca pífano ("Fifre"). Segundo o autor, ele e a flauta transversal são dois instrumentos extremamente semelhantes, diferindo apenas em sonoridade (a sonoridade do pífano sendo mais estridente e viva) e não em técnica.

Flauta doce ("Fluste d'Angleterre")

O verbete que fala sobre a flauta doce tem como proposta informar o leitor sobre a "Fluste d'Angleterre" (flauta da Inglaterra), também conhecida como "Fluste douce" (flauta doce) e flauta de nove orifícios. Ficou conhecida pelo primeiro nome por ter sido enviada à França por um rei inglês cujo nome não é citado no verbete; pelo segundo nome por conta da doçura de seu som; pelo terceiro nome pelo fato de possuir nove orifícios. Atualmente, é também conhecida entre os franceses como "flûte à bec" (flauta de bico).

A flauta descrita por Mersenne poderia ser tocada tando por destros tanto por canhotos, uma vez que o orifício mais próximo do pé da flauta era dobrado (um furado mais à direita, outro furado mais a esquerda, mas ambos na mesma altura e com o mesmo diâmetro), a fim de que os dedos mínimos das mãos de ambos os tipos de flautistas pudessem alcançá-los. Além disso, ele afirma que a extensão da flauta doce é a mesma extensão do "Flageollet". Conforme a tablatura mostrada por ele, a extensão aproximada seria equivalente a uma décima quinta.
A imagem acima está presente no verbete. Ela mostra vários instrumentos musicais, a maioria deles flautas doces. As letras presentes na imagem servem para que o leitor se localize ao procurar nela as partes dos instrumentos às quais Mersenne faz menção. O instrumento apontado pela seta verde é a flauta doce em sua forma mais conhecida. As setas azuis mostram uma flauta doce menos conhecida. Segundo o autor, tal flauta poderia medir de 7 a 8 pés de comprimento (algo entre dois metros e dois metros e meio!). A elipse azul mostra a peça central da flauta e o orifício escondido por ela, o qual é tapado através da ação de chaves. Em flautas menores, tal orifício é dobrado (conforme descrito um pouco mais acima nesta postagem). Aqui, porém, as chaves que tapam esse orifício são colocadas em ambos os lados da flauta. No vídeo abaixo você poderá ver melhor como funciona e como soa esse instrumento. Para ver outros tipos de flauta doce, visite a postagem referente aos diversos tipos de flauta, presente neste mesmo blog.

Esse verbete traz algumas linhas muito curiosas sobre uma técnica cujo emprego só se faz, atualmente, em música contemporânea e popular. Mersenne comenta com muita naturalidade que a extensão da flauta doce pode ser expandida se o flautista tocar e cantar ao mesmo tempo, "pois o vento que sai da boca enquanto se canta é capaz de fazer a flauta soar, de forma que um homem sozinho pode fazer um Duo". É interessante o fato de que, no verbete voltado para a flauta transversal, tal técnica não foi mencionada. O autor fala apenas sobre a possibilidade da construção de instrumentos dotados de dois tubos, invenções que capacitariam o instrumentista a fazer um duo sem precisar de outro músico para acompanhá-lo. Talvez o autor não tivesse visto em sua relativamente longa vida alguém que fosse capaz de aplicar tal técnica à flauta transversal com a mesma eficiência aplicada à flauta doce, levando-o a crer que o canto interferiria de forma drástica na embocadura necessária para tocar o tipo mencionado de flauta. Não obstante, é realmente notável que, em 1636, alguém já havia escrito sobre algo cuja entrada no repertório técnico flautístico se deu numa época relativamente recente!

Principais fontes:
MERSENNE, Marin. Harmonie Universelle. Paris: 1636. Fac-símile presente em: SAINT-ARROMAN, Jean. Méthodes & Traités: Flûte à Bec - Europe 1500-1800. Vol.I. p.165-168. 3ªEd. Bressuire: Anne Fuzeau Productions, 2001.
MERSENNE, Marin. Harmonie Universelle. Paris: 1636. Fac-símile presente em: SAINT-ARROMAN, Jean. Méthodes & Traités: Flûte Traversière - France 1600-1800. Vol.I. p.7-10. 3ªEd. Bressuire: Anne Fuzeau Productions, 2001.
POWELL, Ardal. The Flute. New Heaven and London: Yale University Press, 2002.

quarta-feira, 11 de julho de 2012

The history of the transverse flute: The Baroque Era (part one)


In Music History, the Baroque Era lies between the years 1600 and 1750. Throughout the Renaissance, the transverse flute was used in two important contexts: in military music and in consort music (check the post on the renaissance flute to review this subject). By the end of the 16th century, things started to change in music making. Consorts that consisted of instruments of the same kind lost some of their popularity to consorts of mixed instruments: violas, fiddles, recorders, flutes, cornetts, as well as the harpsichord, the lute and the theorbo.

The preference for this new kind of music will be, in Italy, the origin of a new musical form: the sonata for soloist. The sonata consisted of a musical composition in which one instrument was treated like the soloist, receiving most of the attention of the composer and the audience. The soloist could be accompanied by one or two instruments - a low-register instrument like the viola da gamba or the basson, playing the bass notes, and a harmony instrument such as the harpsichord or the theorbo. This new musical form brought new musical exigences to the instrumentalists. To fulfill those new demands, they had not only to rethink their instrumental techniques, but they also had to find other ways to make their instruments.
Paulo da Mata (playing the traverso) and Guilherme de Camargo (playing the theorbo) playing a piece by Michel Blavet, a French composer of the 18th century. This video is a good example of the new role of the flute during the Baroque Era, even though it is a late example if we consider that this kind of music started to be played in Italy by the end of the 16th century.

The court of Louis XIV, the Sun King, was very favorable to the development of this new kind of music and other more elaborated instrumental forms. While the music employed in solemnities and official royal events was rigidly taken care of by Jean-Baptiste Lully, the music played in private parties had a more inventive character. Talented instrumentalists were invited to such occasions and the preferred instruments were, at that time, the theorbo, the harpsichord, the viola da gamba and the flute. This kind of music provoked another great change: instrumentalists that used to play two or more instruments professionally started to specialize in one instrument, aiming to achieve a high degree of virtuosity on the chosen instrument. 

The transverse flute of the Baroque Era (known simply as traverso) acquired a more or less definite form around the year 1670. Some differences are noticeable when comparing a traverso and a renaissance flute: the traverso was divided in more pieces (the renaissance flute was divided in two pieces or wasn't divided at all, while the baroque flute could be divided intro three or even four pieces); the bore changes from cylindrical to conical; a new tone hole is added and it remains closed by a key that, when pressed by the little finger of the right hand, opens the hole.

The Hotteterre family became famous as an important family of wind instrument makers. The most famous among the Hotteterres is Jacques-Martin Hotteterre (1674-1763), nicknamed "le Romain". His fame - both while alive and posthumous - is due to his treatise "Principes de la Flute Traversiere" (1707). His treatise has directions on how to play the traverso, the recorder and the oboe. However, the thought that he was the one who 'invented' the baroque flute is not accurate. Some researchers point out that the key on the foot of the flute might have been invented around the year 1670, four years before Jacques-Martin was born.
A flute maker from Japan talks (in Japanese) about his replica of a Hotteterre traverso found in Graz. Even being unable to understand Japanese, that's a very interesting video: the craftsman shows to the camera all the pieces of the traverso in different angles.


The Hotteterre flute found in Graz may have been made by Jacques-Martin or his father Martin. That flute is considered the best example of the early French baroque flute. This was probably the instrument that Lully had in mind when he wrote what researchers consider to be the first apparition of the transverse flute in an orchestra: his opera-ballet "Le Triomphe de l'Amour", from 1681. Instruments thought to be made by the Hotteterres were also found in Berlin and Saint Petersburg, but it was found out recently that they are replicas made in the 19th century. Those last two are pitched in A=400hz, while the flute found in Graz is in A=392hz. All the three flutes have a rich and smooth tone.
 The sound of a Hotteterre flute. This piece was written by Michel de Labarre (1675-1745).

A few paragraphs ago, I wrote that the baroque flute could be divided in three or four pieces, contrasting to the one-pieced (or, sometimes, two-pieced) renaissance flute. This division is due not only to the ease to carry a disassembled instrument, but also to tuning issues. The pitch adopted in a determined city could be different from the pitch adopted in other cities. One way to make tuning easier was to make flutes in four parts and to provide the flutists with upper-bodies of different lengths: the bigger the upper-body is, the lower is the tuning. Those extra upper-bodies were known as "corps de rechange" (something like "exchangeable bodies"). 
A four-piece flute by Carl August Grenser (1720-1807), with six "corps de rechange". The foot of that flute also has a tuning mechanism: when pulled out, it makes the foot longer and, therefore, lowers the tuning.

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Now that this little historical contextualization was made, it is time to start writing about the flute publications that I have in my personal library. We have stopped at the time when the one-keyed flute was invented - then, the following posts will deal with the methods and treatises written until that point in history. When I'm done with this, I'll continue our little historical contextualization (The Baroque Era - Part II).  Some of the publications that I plan to discuss  at the moment are the treatises written by Hotteterre, Quantz and Tromlitz, among many other methods and writings.

POWELL, Ardal. The Flute. New Heaven and London: Yale University Press, 2002.
SOLUM, John. The early flute. Oxford: Oxford University Press, 1992.