Na história da música, o período barroco está compreendido entre os anos 1600 e 1750. Ao longo da Renascença, as flautas transversais eram usadas em dois contextos principais: a música militar e a música de consorte (rever a postagem sobre a flauta no período renascentista para relembrar o assunto). Ao final do século XVI, algumas mudanças começaram a ocorrer no fazer musical. Os consortes de instrumentos do mesmo tipo perderam um pouco de popularidade, cedendo mais espaço para os agrupamentos instrumentais mistos: violas, violinos, flautas doces, flautas transversais, cornetas, trombones, instrumentos de teclado como a espineta e o cravo e instrumentos de cordas de dedilhadas como o alaúde e a teorba.
A preferência por esse novo tipo de
música será, na Itália, o gérmen do surgimento de uma forma musical que, grosso
modo, é utilizada ainda nos dias de hoje: a sonata para solista. Uma sonata
para solista daquela época consistia em uma composição na qual a maior parte da
atenção está voltada para um instrumento principal, o qual poderia ser
acompanhado por um ou dois instrumentos responsáveis por fazer a base da música
– um instrumento grave como a viola da gamba ou o fagote para fazer o baixo e
um instrumento como o cravo, a espineta ou a teorba para fazer as harmonias. O
amplo uso dessa nova forma de composição musical será responsável por trazer
novas exigências aos instrumentistas, os quais, além de precisarem reavaliar
suas respectivas técnicas, também precisarão repensar a construção de seus
instrumentos.
Paulo da Mata (no traverso) e Guilherme de Camargo (na teorba) interpretam uma peça escrita por Michel Blavet, um compositor francês do século XVIII. É um bom exemplo do novo papel da flauta no período barroco, embora seja um exemplo tardio em relação ao aparecimento da sonata solista na Itália, no final do século XVI.
O ambiente da corte de Louis XIV, o Rei
Sol, foi bastante propício para o desenvolvimento dessa e de outras formas
musicais instrumentais mais elaboradas. Enquanto que a música de eventos
solenes e oficiais seguia padrões rígidos – os quais eram observados de perto
pelo diretor musical da corte, Jean-Baptiste Lully (1632-1687) –, a música de
festas privadas tinham um caráter mais livre e virtuoso. Instrumentistas de
especial talento eram convidados para tais ocasiões e os instrumentos
preferidos eram, naquela época, a teorba, o cravo, a viola da gamba e a flauta
transversal. Esse novo tipo de fazer musical proporcionou outra grande mudança
na profissão dos músicos: instrumentistas que, outrora, tocavam dois ou mais
instrumentos, passaram a especializar-se em apenas um, a fim de atingir um grau
de excelência no tocar do instrumento eleito, possibilitando-lhes executar
peças de maior virtuosismo.
A flauta transversal do período barroco
(conhecida como traverso barroco) adquiriu uma forma mais ou menos estabelecida
por volta do ano de 1670. Algumas diferenças em relação à flauta renascentistas
são notáveis: a flauta começa a ser dividida em mais partes desmontáveis (as
flautas renascentistas eram, geralmente, peças unas ou, em raras ocasiões,
divididas em duas peças, enquanto que a flauta barroca poderia ser dividida em
três ou quatro peças); o tubo deixa de ser cilíndrico e passa a ser cônico, ou
seja, seu diâmetro torna-se cada vez mais estreito ao longo do instrumento,
atingindo seu maior diâmetro na extremidade da cabeça da flauta e chegando ao
menor diâmetro na extremidade do pé da flauta; um orifício é acrescentado, o
qual permanece fechado por uma chave que, quando acionada (via de regra pelo
dedo mínimo da mão direita do flautista), o abre.
A família Hotteterre entrou para a
história da música como um importantíssimo clã de fabricantes de instrumentos
de sopro, tais como oboés e fagotes (além de flautas, claro). O mais famoso
dentre os membros da família é Jacques-Martin Hotteterre (1674-1763), apelidado
de "le Romain". Sua fama – tanto em vida quanto póstuma – deve-se enormemente
ao seu tratado "Principes de la Flute
Traversiere" (1707), o qual trata não apenas da flauta transversal, como
também da flauta doce e do oboé (escreverei sobre essa publicação em uma postagem
individual, futuramente). No entanto, não é bem fundamentada a atribuição que
lhe dão como o inventor da flauta barroca. Indícios apontam que a chave para
o dedo mínimo fora inventada por volta do ano de 1670. Como poderia ele tê-la
inventado quatro anos antes de ter nascido? Também foram levantadas outras hipóteses
para a invenção da flauta barroca, todas envolvendo outros membros da família
Hotteterre, todas elas igualmente desprovidas de fundamentação sólida.
No vídeo acima, um luthier japonês fala (em japonês) sobre sua réplica de um traverso Hotteterre encontrado em Graz. Mesmo não compreendendo uma palavra, é um vídeo interessante: ele mostra cada uma das peças do traverso, em vários ângulos.
A flauta Hotteterre encontrada em Graz pode ter sido construída por Jacques-Martin ou por seu pai, Martin. Tal flauta é considerada o melhor exemplo do estágio inicial da flauta barroca francesa. Foi para esse tipo de flautas, muito provavelmente, que Lully escreveu música para aquilo que se considera a primeira aparição de flautas transversais dentro de uma orquestra: sua ópera-balé "Le Triomphe de l’Amour", de 1681. Também foram encontrados instrumentos classificados, inicialmente, como flautas Hotteterre em Berlim e em São Petersburgo, mas descobriu-se recentemente que tratavam-se de réplicas feitas no século XIX. Estas duas últimas flautas têm o lá em 400hz, enquanto que aquela encontrada em Graz tem o lá em 392hz. Os três instrumentos são dotados de sonoridade bastante rica e suave.
O som de uma flauta Hotteterre, através de uma peça para duas flautas escrita por Michel de Labarre (1675-1745).
Há alguns parágrafos, escrevi que a
flauta do período barroco passou a ser construída em três ou quatro peças
desmontáveis, em oposição com a construção predominantemente una da flauta
renascentista. Essa divisão não se deve exclusivamente à praticidade que ela
ocasionava na hora de guardar o instrumento e carregá-lo consigo. Como dito em
postagens anteriores, a altura do lá variava muito de cidade para cidade – e,
muitas vezes, dentro de uma mesma cidade, de igreja para igreja. Com tantas
afinações diferentes, não era nada viável que um flautista possuísse várias
flautas, cada uma com uma afinação própria. Alguns luthiers, então, passaram a
construir flautas em quatro partes: a cabeça ou bocal (local onde fica
localizado o orifício onde se sopra); o corpo superior (local onde ficam os
orifícios superiores, mais próximos do orifício do bocal); o corpo inferior
(local onde ficam os orifícios inferiores, mais próximos da extremidade final
da flauta); e, por fim, o pé (a ponta da flauta, onde fica localizada a chave que
abre o sétimo e último orifício). A flauta em quatro partes poderia ser
acompanhada de vários corpos superiores, cada um com um comprimento diferente.
Dessa maneira, o flautista poderia, na hora de montar sua flauta, escolher qual
dos corpos superiores utilizar, alcançando a afinação apropriada para o local
onde ele iria tocar: quanto maior o corpo superior escolhido, mais baixa a
afinação; quanto menor, mais alta. Esses corpos superiores extras eram chamados de "corps de rechange" (algo como "corpos de troca").
Flauta feita por Carl August Grenser (1720-1807), em quatro peças. O luthier fez seis corpos superiores de tamanhos diferentes. Além dos "corps de rechange", a flauta conta também com um mecanismo bem particular, localizado no pé: trata-se de uma peça retrátil, a qual, na foto acima, está em sua máxima extensão. Quanto mais para fora a peça retrátil estiver, mais baixa será a afinação; quanto mais para dentro, mais alta.
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Tendo feita essa pequena
contextualização histórica acerca da história da flauta transversal desde a
Idade Média até meados do Barroco, é chegada a hora de começar a falar de forma
mais direta sobre o material do qual disponho. Decidi parar neste ponto da
história da flauta (no ponto do estabelecimento do traverso barroco como o
instrumento descrito nesta postagem, ou seja, a flauta de tubo cônico, sete
orifícios e uma chave) a fim de, agora, falar sobre o material relacionado a
esse tipo de flauta. Ao longo do período barroco e no início do período
clássico, a flauta vai sofrer ainda muitas modificações, especialmente naquilo
que trata do surgimento de novas chaves e mecanismos. Quando for o momento de
falar sobre esses outros tipos de flauta, sigo com a contextualização histórica
– começando pela segunda parte desta postagem, portanto. O material voltado
para o traverso barroco de uma chave é vasto e de peso: o supracitado tratado
de Jacques-Martin Hotteterre, o detalhadíssimo tratado de Johann Joachim Quantz
e o igualmente minucioso primeiro tratado de Johann George Tromlitz, além de
vários métodos interessantes de autores menos conhecidos e publicações avulsas
igualmente esclarecedoras.
Postagens relacionadas:
Principais
fontes:
POWELL,
Ardal. The Flute. New Heaven and
London: Yale University Press, 2002.
SOLUM, John. The early flute. Oxford: Oxford
University Press, 1992.